sexta-feira, 8 de julho de 2011

quando a teoria ajuda

Apontamentos acerca das territorializações de si

“Quando Pedro me fala de Paulo sei mais de Pedro que de Paulo”

Sigmund Freud

Inicio esse escrito com a frase que para mim marca teórica e analiticamente as obras freudianas que conheço. Considero o estudo da Psicanálise enquanto campo teórico que orienta a prática profissional até a utilização deste saber para nortear todos os outros campos que consideramos “nossos”, no aspecto afetivo e laboral. Penso que Freud quis expressar que todo e qualquer discurso é dado através de um ponto de vista, e por isso está de alguma forma contaminado por saberes e tendências de quem o enuncia. A escolha de um tema para um trabalho é, a meu ver, uma tentativa de elucidar claramente os desdobramentos que de uma questão norteadora se multiplicam. No presente escrito, considero a análise da minha experiência de vida enquanto filha de um oficial militar, moradora de 8 cidades brasileiras em 20 anos de vida, estudante e eterna pesquisadora do comportamento e pensamento humanos como questão que dispara intensos questionamentos acerca das apropriações territoriais que praticamos no decorrer de nossas vidas.

Acredito que nesse sentido de se falar algo que se queira descobrir, a Psicanálise novamente venha a nos auxiliar com ferramentas conceituais. A escrita para mim é instrumento catártico, é via de escape e encontros, estrada para destinos e trajetos clarificadores, enriquecedores. Se algum dia Sigmund Freud e Josef Breuer juntos tentaram desvelar os benefícios que um paciente teria ao discorrer sobre suas questões problemáticas, hoje este processo de “cura pela fala” é demonstrado aqui como forma de aproveitamento do conteúdo pessoal à nível acadêmico. De certa forma, seria possível separá-los?

No campo de análise das práticas profissionais, muitos atravessamentos particulares são descobertos no trajeto que revela a implicação de quem se propõe ao trabalho. Gregório Baremblitt (1992) considera a análise desta implicação como elemento fundamental para apropriação do processo interventor. Acerca do que o profissional enquanto operador de um serviço oferta para uma dada faixa da população, o autor refere que

“(...) se a análise da implicação é a análise do compromisso sócio-econômico-político-libidinal que a equipe analítica interventora, consciente ou não, tem com sua tarefa, ela começa pela análise da implicação existente na oferta, ou seja, na produção da demanda.” Pg 96

Desta forma, entende-se a implicação enquanto grau de comprometimento do interventor com seu objeto e objetivo de intervenção. Para além de um compromisso ético, acredito que o que conduz o profissional na direção de um trabalho implicado geralmente mobiliza os demais aspectos e campos de sua vida. Uma produção implicada é embebida de gás, paixão, conteúdo. O autor menciona que a apropriação de um tema e sua conseqüente curiosidade acerca de novas descobertas pode pautar-se a partir do que denomina “auto-análise”. Segundo Baremblitt, a auto-análise atua enquanto propriedade do saber de si, por meio de estratégias de reconhecimento dos seus próprios desejos, anseios e possibilidades.

A auto-análise consiste em que as comunidades mesmas, como protagonistas de seus problemas, de suas necessidades, de suas demandas, possam enunciar, compreender, adquirir ou readquirir um vocabulário próprio que lhes permita saber acerca de sua vida, ou seja: não se trata de que alguém venha de fora ou de cima para dizer-lhes quem são, o que podem, o que sabem, o que devem pedir e o que podem ou não conseguir. Este processo de auto-organização, em que a comunidade se articula, se institucionaliza, se organiza para construir os dispositivos necessários para produzir, ela mesma, ou para conseguir os recursos de que precisa para a manutenção e o melhoramento de sua vida sobre a terra.” Pg 17

Estaria ele se referindo ao que compete ao domínio do indivíduo? Me refiro ao que é pertencente à construção subjetiva do homem, enquanto espaço de (re)conhecimento de si. Desta forma, utilizo a partir daqui o conceito de território para tentar ilustrar a forma como entendo a composição de territorializações, desterritorializações e reterritorializações num plano mosaico de encontros e significações tendo como pano de fundo a análise de si.

O aporte teórico que embasa minhas suposições parte da leitura do Compêndio de Análise Institucional, escrito por Gregório Baremblitt, com foco na análise de implicação e estudos de Felix Guatarri e Gilles Deleuze acerca das delimitações territoriais no plano existencial.

No plano biológico, o território é nomeado área que está sob posse de um animal, pessoa, instituição ou organização; e cujas leis operam para criar ordem e hierarquia. No geográfico, uma superfície terrestre pertencente a alguém, geralmente ao Estado. No plano existencial, a geografia humana me faz pensar que o corpo se inscreve enquanto território a partir de suas movimentações; perpassa demais territórios deixando uma marca. Como um animal que deixa um faro e aí “marca território”, o ser humano tem diferentes formas de criar vínculos, territorializar-se, desapegar-se, desterritorializar-se e recomeçar o processo, reterritorializando-se.

Zilá Mesquita (1995) traz a abordagem de um território que vai além do plano geográfico e concreto, provocando o leitor a pensar que a delimitação de uma área está intimamente relacionada ao conceito autêntico de soberania. Um território é considerado como tal quando esta sob o poder de alguém e, portanto, responde às leis e à jurisdição local. No território de si – expressão que tento compreender -, penso que este é um espaço em que o sujeito pôde se apropriar. Suas crenças, hábitos e costumes fazem parte de algo que está sob o seu controle, sob o domínio e caráter conhecido do sujeito. A autora menciona que a extensão do território define o campo de aplicação do poder que seu dono exerce sobre ele. Nesse sentido cabe pensar que o homem controla o seu território e ao mesmo tempo consegue jogar com os limites deste controle. O apego a terra – aqui entendida não apenas em sua acepção geológica, mas enquanto cenário do exercício e desenvolvimento humanos – pode ser considerado uma apropriação, uma territorialização. Mesquita (1995) refere que

“O território é o que é próximo; é o mais próximo de nós. É o que nos liga ao mundo. (...) É o espaço que tem significação individual e social. Por isso ele se estende até onde vai a territorialidade, aqui entendida como projeção de nossa identidade sobre o território.” Pg 83

Existe uma demarcação de território que compete à defesa de um espaço onde operam elementos de uma identidade. O conceito de identidade pode ser definido como uma articulação de aspectos individuais que caracterizam uma pessoa. No entanto, a identidade pode ser entendida enquanto plural, constituída a partir das relações sociais. Por compreender o processo de permanente mudança que os encontros nos possibilitam, tem o caráter de metamorfose. Penso que ao se relacionar com um espaço, ocupar ema faixa de terra que impulsiona a criar vínculos, o homem crie raízes no território e relações quem o habita. Este processo de vinculação e apropriação dos modos de ser e ocupar pode ser interpretado enquanto processo de territorialização. Seria o homem adquirindo, descobrindo e assumindo as suas territorialidades.

Felix Guatarri e Suely Rolnik (1986) afirmam no livro “Micropolítica: Cartografias do Desejo”, que:

“A noção de território aqui é entendida num sentido muito amplo, que ultrapassa o uso que fazem dele a etologia e a etnologia. Os seres existentes se organizam segundo territórios que os delimitam e os articulam aos outros existentes e aos fluxos cósmicos. O território pode ser relativo tanto a um espaço vivido, quanto a um sistema percebido no seio da qual um sujeito se sente ‘em casa’. O território é sinônimo de apropriação, de subjetivação fechada sobre si mesma. Ele é o conjunto de projetos e representações nos quais vai desembocar, pragmaticamente, toda uma série de comportamentos, de investimentos, nos tempos e nos espaços sociais, culturais, estéticos, cognitivos”.Pg 323

Se pensarmos na territorialização como processo de apropriação, tomada de conhecimendo e criação de vínculos, fica clara a tentativa de conhecer e dominar este espaço cósmico para que ali ordene uma lei, uma criada a partir da dimensão já conhecida do indivíduo. Gregório Baremblitt traz na mesma obra já citada o conceito da dimensão instituída em uma análise. Grosso modo, o instituído é aquilo que conhecemos e sabemos como lidar. Aos poucos instituímos diversos territórios no decorrer de nossas vidas. Formas de habitar e permanecer habitando e habituado são modalidades de institucionalizações. Quando se rompe este processo? De que forma o homem sente que basta o que já conhece e o que o impulsiona a desbravar algo novo?

Antes de entender esta ruptura, é preciso esmiuçar a relação que os indivíduos travam com esta terra. Só assim se atribui um valor e a partir daí se engendram novas possibilidades para novas conquistas.

Historicamente, o sistema no qual o homem se subjetiva configura e influencia diretamente sua forma de se desenvolver, criar relações e fazer escolhas. No plano econômico-social, o capitalismo possui a premissa da propriedade privada enquanto direito do cidadão de se apoderar de um espaço e fazer nele operar suas leis. Evidente que é uma operação não dissociada do resto do mundo, e neste sentido é importante pensar no quanto o indivíduo é realmente mestre de seu espaço e ao mesmo tempo depende do/ é afetado pelo/ afeta o que acontece “fora da redoma”.

“A propriedade privada compreende os poderes de usar, gozar e dispor de uma coisa, a princípio de modo absoluto, exclusivo e perpétuo. Não podem, no entanto, esses poderes serem exercidos ilimitadamente, uma vez que colidiriam com direitos alheios, de igual natureza e porque existem interesses coletivos que podem limitá-la. Assim, por exemplo, o poder público pode desapropriar uma propriedade privada, se for usada para benefício múltiplo e comum.”

Novamente a noção de domínio paira sob esta análise. O homem que possui o território e faz dele algo privado, seu, confirma a hipótese de que este é o objetivo por trás da apropriação. Estaríamos todos procurando algo que seja intimamente e exclusivamente nosso?

Partindo da idéia de que território adquirido/conquistado é um espaço de estabilidade e organização, o processo de desterritorializar-se seria uma ação de desordem, de fragmentação para buscar encontrar novos saberes, menos instituídos, adotando uma percepção diferenciada que está pronta para descobrir novas idéias além das previstas. Nesta perspectiva, Baremblitt conceitua a dimensão instituinte que propõe o acréscimo de elementos desconhecidos para que se transforme um plano instituído em algo ainda não dominado/desbravado.

O conceito de desterritorialização consiste em adotar um chamado “olhar estrangeiro” para as coisas à nossa volta. Segundo Ianni. (1996),

“(...) o sujeito do conhecimento não permanece no mesmo lugar, deixando que seu olhar flutue por muitos lugares, próximos e remotos, presentes e pretéritos, reais e imaginários”. Pg. 169

Os agenciamentos que se fazem nesta terra cuja relação é travada com o homem inscrevem relações conectivas. Entretanto, Guatarri e Deleuze discorrem acerca do conceito de desterritorialização mencionando o Estado enquanto figura responsável por considerar o trabalhador “solto”, que vende sua força de trabalho desvinculado de um plano fixo. Em uma leitura minuciosa da obra dos autores, Rogério Haesbaert e Glauco Bruce (2002) mencionam:

“(...) O Estado constrói novos agenciamentos, sobrecodifica os agenciamentos territoriais que constituíam as sociedades pré-capitalistas, configurando novos agenciamentos maquínicos de corpos e agenciamentos coletivos de enunciação”.

Desta forma, a ideia de desterritorializar-se estaria muito próxima da ideia de desvinculação a uma terra que identifica e comporta características constitutivas de cada indivíduo. Assim, tudo se trata de um novo processo que se assemelha ao método dialético proposto por Hegel e Marx. Estaríamos no plano da tese quando nos apropriamos de um território. Adquirimos a faceta da antítese quando nos questionamos acerca do que já fora conquistado e do que ainda há para ser descoberto. Após nos territorializarmos, desterritorializarmos... o que resta? A proposição da síntese me parece familiar quando se pensa em reterritorialização. O ser humano precisa de raízes e de um processo que o englobe, que engrene os agenciamentos que constrói no decorrer de sua trajetória.

A reterritorialização seria simplesmente transferir a um novo território as novas possibilidades instituintes e criativas? Reterritorializar-se poderia ser criar com uma nova terra uma nova história, novos agenciamentos de hábitos, criar com esta relação possibilidades de se recriar. A bagagem de uma apropriação antiga atravessa este novo processo de apropriação? Apoderar-se novamente e fazer valer o conhecimento adquirido nas demais conquistas. Desta forma, o processo é alimentado e não cessa nunca.

“Novas práticas sociais, novas práticas estéticas,

novas práticas de si na relação com o outro, com o

estrangeiro, como o estranho: todo um programa

que parecerá bem distante das urgências do

momento!”

(Guattari 1995)

Todo nascimento pede nova identidade
Ocupação do espaço existencial
Toda identidade deseja transformar
Territórios linhas a nos permitir
Fios conduzem eletricidade
Movimentam os homens
E suas cidades
Cérebros são cidades
Corrente de intensidades
Pensamentos condensados sensação
Funcionam como elos
Formando mapas a nos constituir
Mente saber anelo, porque vivo?
Lugares nem sempre vistos, são descobertos
Habitam em nós, embrutecidos
Somos afetos sentimentos a nos conduzir

Ualy Castro Matos


Referências Bibliográficas

· HAESBAERT, R.; BRUCE, G. A desterritorialização na obra de Deleuze e Guattari. GEOgraphia, ano IV, n. 07, 2002;

· BAREMBLITT, G. Compêndio de Análise Institucional e outras correntes: teoria e prática. Glossário – p.133 – 173) Rio de Janeiro: Rosa dos Ventos, 1992;

· MESQUITA, Z. Territórios do cotidiano. Cap.7 - Do território à consciência territorial, 1995;

· GUATTARI, F.; ROLNIK, S. Micropolítica: Cartografias do desejo. Petrópolis, RJ: Vozes, 7ª. Edição Revisitada, 2005;

· IANNI, O. Teorias da globalização. 3. ed. Rio Janeiro: Civilização Brasileira, 1996;


Nenhum comentário: