segunda-feira, 14 de março de 2011

Espera. Espera aí só mais um pouquinho. Segura.

Sem expectativas, sem frustrações? Mas é possível não esperar nada? E a idealização, e o sonho? E o desejo? Será que alguém que use a racionalidade à mil conseguiria aniquilar todas as migalhas da pré-ocupação?

Quando Janine me olhou eu confesso que estremeci. Ela tinha olhos de águia e uma boca curvada pra dentro que demonstrava certo rancor, algo que nem a raiva era capaz de suprir. O que os seus cabelos loiros levados pelo vento me falavam eu esquecia, porque o aroma que dali saía e se infiltrava em mim era ensurdecedor. O olhar dela. Era isso que penetrava mais fundo. Eu sabia que dali eu tinha duas escolhas. Ou nos amávamos até o fim dos tempos, ou o ódio consumiria nossas carnes até que não sobrasse mais nenhum pó de osso. E o mais esquisito é não saber de onde brota a raiva, não saber que fim leva. É uma indiferença que fez morrer o amor. Não sei.

Voltando no tempo eu até entendo o atrito entre nós. In my place começa a tocar e eu me sinto num flash back que move todos os meus instintos, direciona a minha consciência pra uma tarde desesperadora atrás de um grampeador, no meio de um escritório lotado de pessoas vazias. Faltavam dois minutos pro prazo final e eu sentia o pé pesado na minha bunda, carimbado de uma longa procura por um novo emprego. No fim do corredor uma mesa vazia, uma caixa de utensílios e um porta-retrato, assim como nos filmes, como quando alguém é despedido. Corri. Grampeei e saí. Um vulto amarelo no chão me chamou a atenção.. ela estava abaixada catando as tachinhas do quadro de cortiça que usava para fixar os compromissos. Compromissos.. hoje são bobagem.

Sorrimos um para o outro e o meu desespero se misturou com a calma frustrada dela. Entreguei o relatório e pude conhecê-la, sem o pé na minha bunda. Pois descobri que dois corpos não podem ocupar o mesmo espaço ao mesmo tempo. O pé foi pesado na bunda dela, ou melhor, ela foi despedida. Essas faltas de respeito eram - por ela - motivo de brigas nossas que não vem ao caso discutir agora, mas quero te contar que o sexo depois disso era uma beleza.

Café, pizza, livraria, parque. Cinema, parque, café, noites. Bebidas, pizza, beijos, amassos. sexo. café. sexo, sexo e sexo. alguns beijos e mais sexo. café e parque. e o ciclo ia ficando cada vez mais diversificado, meu amigo. Eu não pude reclamar, mas quando o fiz, fui apresentado à família e tive a obrigação velada e social de apresentá-la aos meus parentes restantes. Vô, vó, aqui está a possível futura "neta" de vocês. Não, ela não é uma irmã.. na verdade parece uma, mas o que fazemos não é considerado incesto.

Alguns anos e eu podia jurar que tudo corria bem. Bom, dentro dela tudo corria, não sei se bem, mas corria. Janine tinha a mania de ter pressa pra tudo. Mesmo quando diz ter entrado na "vibe sossegada", ela tinha um formigueiro correndo pelas veias, picando cada pequeno pedaço de seu corpo que poderia relaxar. A cabeça sempre a mil. Cada palavra, uma nova associação e sempre uma discussão. Eu nem reclamo, já te contei que depois da discussão o sexo é bom, né? Pois é, então eu gostava desse jeitinho complicado dela de ver e fazer as coisas. Tipo fazer três sanduíches de mini pão com queijo branco e depois encher de doce de leite, só pra saciar logo a vontade de sobrepor sabores. Ou a mania desesperadora de sair de casa com uma tonelada de corretivo pra olheiras e mais dois litros de silicone no cabelo.
Mais uma vez, eu não reclamo, prefiro silicone no cabelo do que no corpo. Porque vou te contar, que corpo. Ali não faltava nada. Podia até sobrar, segundo sua consciência hipócrita. Janine pregava que não concordava com a ditadura da magreza. Mas tava sempre podando alguns exageros, correndo, usando roupas básicas e que "alongam". Ok, eu gostava do que se deitava do meu lado todas as noites.. e ela sabia disso.
Usava e abusava da minha boa e má vontade e sabia direitinho como me distrair de uma leitura pra rolar no chão da sala. Uma vez a coisa foi tão forte que a vibração das vassouradas do vizinho de baixo fez o orgasmo ficar mais intenso.

Pois bem, Janine era avassaladora. Criança, madura, divertida, linda. Mas ela não se bastava. Procurava tanto alguma coisa nova que quando conseguia nem curtia, já achava que era velho e queria outra coisa nova. Me surpreende termos durado tanto.

Mas aí que tá a lei do caso e acaso. Eu reclamei, pensei que ela era realmente um pouco problemática e mesmo que eu gostasse disso, eu fiz a besteira de me abrir com ela. Contei que eu adorava o jeitinho indeciso dela de saber se terminava as sessões de clareamento dental ou se juntava dinheiro para alugarmos um apê maior. Besteira minha. Aí ela começou com aquele papo de individualidade, de prioridades, de profissionalismo. Besteira, grande besteira minha.

Ficou uns dois dias meio monossilábica e no terceiro dia, o dilúvio. Tpm, telefonema da mãe, unha quebrada e dor nos rins. Eu fiz um chá, mas acho que piorei as coisas. De repente eu me vi na frente de um rádio com uma boca enorme, de onde saíam palavrinhas que flutuavam com pontos de exclamação por toda a parte. Ela surtou, sério que surtou.

Passou a noite encolhidinha e eu fui lá né, tentar dar um chamego, aquelas coisas que a gente faz pra manter o relacionamento cômodo. Ela ficou quieta. Certo que pensou "demorou, paspalhão", mas adorou os carinhos na nuca. Eu sei que adorou.

Depois de algumas desculpas e uns beijinhos doces ela foi trabalhar. Deixou o celular em casa. Ligou da agência nova de publicidade que abrira umas semanas atrás e disse que teria uma festa com os funcionários pra inaugurar algumas salas. Avisou que voltaria tarde.

8 e meia da manhã ela abre a porta meio descabeladinha, mas a maquiagem não tava borrada. Ufa, se a maquiagem estivesse borrada eu sairia batendo porta. Ela entrou com a pontinha dos pés e fechou a porta. Se virou e derrubou os sapatos de susto quando me viu sentado no braço do sofá bebendo café e lendo o jornal vencido. Sorriu e disse "Oi amor". Se escapou pra dentro sem nem um beijo de bom dia. À essa altura eu nem considerava uma conversa pra saber onde ela passou a noite.. eu achei estranho demais ela ter entrado direto pro banheiro se declarando culpada de alguma coisa.

Fui até o quarto e perguntei. Ela disse que eu não deveria sufocá-la, afinal de contas, nós apenas namoramos. "Apenas namoramos"? Ah tá, desculpa, eu vou perguntar isso ali pro seu João, já que ele é apenas um jornaleiro e nós "apenas temos uma relação cordial". É assim Janine?

Olha só, eu acho que a gente tem que repensar a nossa relação aqui. Eu fiquei a noite toda conversando sobre propostas no exterior e acho que isso seria bom pra mim. E pra nós.

Ela disse isso olhando pra mim de rabo de olho. Safada, eu sabia que alguma coisa de ruim tava correndo naquela cabeça. A Janine tinha dessas de passar dias calada e de repente quando abre a boca vem uma avalanche de informações acumuladas você não sabe nem de onde. Esse desequilíbrio dela me encantava. Aparentemente a minha observação minuciosa do que ela era e fazia não causava o mesmo frisson.

Do mesmo jeito que as águas se abriram quando Moisés quis, ela resolveu catar as coisas e disse que iria passar uns tempos na casa de uma tia no Rio de Janeiro. Até aonde nos lembramos, leitor, ela falava de exterior.. Porto Alegre - Europa não é tão mais caro que Rio de Janeiro - Europa, ainda mais considerando a urgência de um plano criado em uma noite. Eu sei lá, ela se foi e providenciamos o cancelamento do contrato com a imobiliária. Essa foi a parte mais correta, legamente falando, que passamos. Tinham regras, consequencias, objetivos claros. Nada era claro naquela relação, senão seus cabelos.

Dado esse fim, volto ao início. Nos conhecemos e já nos tornamos indispensáveis um para o outro. Não criamos a conquista com gosto de impossível, nem tivemos grandes obstáculos. Simplesmente seguimos os nossos desejos e ficamos juntos. Sem expectativas, sem frustrações. Mas.. e isso que eu sinto agora apunhalando o meu peito é o que, senão frustração vencida com vermes corroendo tudo o que a gente plantou junto?

Tem como começar um amor e terminar um amor sem planejar ficar velhinho, ou jogar frescoball com os filhos, ou beber vinho de noite, ou sei lá mais o que que se planeja? Tem como? Porque eu não fazia nada disso. Eu vivi de momentos com a Janine e agora fico pensando se ela ficou frustrada também. Fico pensando se a falta de expectativas por minha parte deixou ela se apagar, se confundir, se escapar. Ela planejou as sessões de clareamento dental e de repente se deparou com o aluguel de uma nova casa. Ela criava sim, expectativas. Ela pensava no futuro. Eu só a observava, registrando cada movimento seu, cada segundo que se passava eu respirava um pouco de ar de Janine. Não vivi passado, não vivi futuro.

Estou condenado a ter vivido pelo presente.

Nenhum comentário: