domingo, 23 de agosto de 2009

apenas um alívio frente à opressão

Ele as desejava, mas tinha medo delas. Entre o medo e o desejo, era preciso encontrar um acordo; era o que ele chamava de 'amizade erótica'. Afirmava a suas amantes: só uma relação isenta de sentimentalismo, em que nenhum dos parceiros se arrogue direitos sobre a vida e a liberdade do outro, pode trazer felicidade para ambos.
Para ter certeza de que a amizade erótica jamais cede à agressividade do amor, só se encontrava com as amantes permanentes após longos intervalos. Achava esse método perfeito e elogiava aos amigos: 'É preciso observar a regra dos três. Pode-se ver a mesma mulher a intervalos bem próximos, mas nunca mais de três vezes. Ou então pode-se vê-la durante longos anos, mas com a condição de deixar passar pelo menos três semanas entre cada encontro".
Esse sistema dava a Tomas a possibilidade de nao romper com as amantes permanentes e ter ao mesmo tempo muitas amantes efêmeras. Nem sempre era compreendido. De todas as suas amigas, era Sabina a que o compreendia melhor. Ela era pintora. Dizia: 'Gosto muito de você, porque você é o contrário do kitsch. No reino do kitsch, você seria um monstro. Não existe roteiro de filme americano ou russo em que você pudesse ser algo além de um caso repugnante'.


Tomas não tinha Sabina, da mesma forma que Sabina nunca teve e nem nunca teria Tomas. Eles acharam-se. Neste mundo em que compromissos são formas de expressão e apresentação de ideias, os dois, malfeitosos e insatisfeitos com o padrão estabelecido, acharam-se e desta forma aproveitam - cada um à sua forma, mas seguindo o mesmo princípio -, um ao outro, sem que o peso do livre arbítrio e da culpa os impedissem de dormir.

Como um soco no estômago, acabo de ler, precipitadamente:

"Gostaria de fazer amor com você no meu ateliê, como se fosse no palco de um teatro. Haveria pessoas em torno e elas não teriam o direito de se aproximar, mas não poderiam tirar os olhos de nós..."
À medida que o tempo passava, essa imagem perdia a crueldade inicial e começava a excitá-la. Muitas vezes, enquanto faziam amor, evocava essa situação baixinho ao ouvido de Tomas.
Ela dizia consigo mesma que havia um meio de escapar à condenação que lia nas infidelidades dele: que a levasse consigo! que a levasse para a casa das amantes! Com esse expediente, talvez seu corpo se tornasse de novo único e o primeiro entre todos. Seu corpo seria o alter ego de Tomas, seu braço direito e seu assistente.


Créditos à Milan Kundera, que me presenteia com esta paródia da vida real: 'A insustentável leveza do ser'.

Ausência Presente

Mostrava à ele os meus projetos como se fosse meu pai, pedindo-lhe autorização e eperando que sua mão pousasse sobre minha cabeça. Sutilmente sinto a ironia me fazer cócegas, daquelas que dóem tanto que não sabemos se rimos ou choramos mais. O livro era sobre algo possivelmente comparável à esta situação. Pai e filha, após anos sem contato, firmam uma relação incestuosa.

"É um segredo nosso", me disse ao mostrar a prévia de nossos encontros semanais, mas digo com propriedade agora que serão quase diários. Estarei junto contigo mais uma vez, mas não grudarei em tua sombra, pois eu tenho o poder de manter uma distância reveladora entre nós.

( e aí , Foucault, explica essa? )

Não grudarei...

"Não acharás", disse ele. Será esta a fórmula para que alguém acalente o meu coração? Diante das últimas tentativas, devo admitir que prefiro estar submissa às forças que me são mostradas, as quais gosto de ser submetida. Em vão... não acharei a fórmula ou nunca te acharei?
Pois bem, acabo de descobrir meu objeto A.

quinta-feira, 20 de agosto de 2009

somos quem podemos ser

Ganthal gostava das pequenezas, dos detalhes sórdidos, das distrações minuciosas, que ocupavam suas mãos, sua boca, seus olhos, seu tudo.


São nesses detalhes em que ela se apoia. Pobre Ganthal, se soubesse que muito na vida é feito e percebido no âmbito da Gestalt da coisa. Após suas sucessivas desilusões amorosas, Ganthal precisava mesmo era de alguém que a entendesse, sem recriminações, cerimônias e mentiras. Há tempos que ela se questiona qual o verdadeiro significado de sua personalidade, se assim Freud a permitir explorar.. o que a incomoda é saber que não há meios nem fins de se chegar à uma verdade plena, o que a frustra; mesmo que saiba que este encontro poderia lhe causar sérios impactos desagradáveis. Ela quer a verdade, ela quer a transparência. De si, dos outros, do que mais? Saber quem se é e assumir com defeitos e furos é uma virtude admirável, devemos admitir. Mas, caros colegas, digam-me por favor: seria natural sentir-se mais desconfortável diante da verdade dolorosa ao invés de mentir e esconder o que nós achamos ser insignificante?

Sábio foi quem proclamou que a verdade dói. Pois dói, mesmo. Gostaria de poder encontrar argumentos que constrastassem com essas afirmações e que me aliviassem da culpa, mas eu já entendo, nesse meu pedaço de vida, que o processo do crescimento é análogo à transformação da largarta em borboleta. Pode demorar um tempo, do geral eu entendo, eu sei que em suma as coisas ficarão bem (assim espero). Mas não sei como fazer, não me sinto apta a progredir nos pormenores. É, Ganthal, sinto que estou contagiada. Eu também gosto dos detalhes, pois neles é que eu não sei agir.

domingo, 16 de agosto de 2009

O que eu faço dentro de mim?

Nenhum comentário. Mas isso não me deixa triste, nem aliviada em achar que isto não é frequentado. Existem muitas formas de se inteirar dos fatos sem dar a cara a tapa. Com sutileza e jogo de cintura a boa esperteza toma lugar dos meios tradicionais de comunicação e fala por alguém que não tem coragem de mostrar-se. Não é uma ofensa, mas se fosse, não seria problema. Eu também sou uma dessas. Depois de estudar os casos de alguns doentes mentais e consequentemente f'ísicos, percebe-se a aceitação do obscuro, do feio, até que se chegue na adoração camuflada dos sentimentos perversos e comportamentos 'antissociais'. Camuflados sim, doutores. Quando fazemos algo de errado, é notório o alívio ao sabermos que alguém fez o mesmo, de modo que sentimo-nos acompanhados na desgraça. Ficar sozinho não é um ponto forte dos humanos.
Vemos que aqui já se encaixa o velho dizer de que o homem não é uma ilha. Huxley, querido, obrigada pelas contribuições de suas obras, mas acho que neste momento desejo reverter meus comentários para outro aspecto.
Sentir-se aliviado pelo infortúnio alheio só porque sabemos que não somos os únicos é normal (deixemos as discussões de {a}normalidade para a Psicologia Social). Porém, arranjarmos a justificativa para tudo, admitindo que o mal faz parte da sociedade e portanto do homem e sua subjetividade pode ser nocivo. Deixe-me expressar melhor.

Susy se relaciona bem com as pessoas. Gosta de fazer novas amizades e é simpática, divertida. De uns tempos pra cá Susy vem se sentindo sozinha, como se o mundo andasse e a deixasse para trás. Depois de passar por uma crise financeira em seu orçamento e saber, por telefone, que um parente muito querido falecera, Susy entrou em depressão. Não apenas por isso, ela não conseguia se relacionar com rapazes, pois era muito insegura e não conseguia comprometer-se com nada. Após dois anos de análise, Susy parece ter melhorado sua percepção sobre o mundo e, principalmente, sobre si mesma. Ela tem problemas, tem frustrações e às vezes recai ao sofrimento por ter perdido pessoas que amava. Porém, seu luto é reforçado por sua força de vontade, conquistada e descoberta no decorrer destes dois anos, o que a faz sentir-se mais feliz e querida pelos que a cercam. O problema neste caso, colegas, é que Susy ainda sente-se solitária e não segue as 'recomendações' de seu analista: sair mais de casa, procurar conhecer pessoas em lugares novos, aventurar-se. Susy acha cômodo ficar em casa e não gosta de experenciar mais, pois sente medo de fracassar e sofrer novamente. Podemos diagnosticá-la facilmente e encaminhá-la à terapia, mas há um impasse comum neste quadro: Susy acha que está tudo bem. Ela admite que a condição humana é repleta de prazeres, pois somos programados para isto. Porém, devemos experimentar os dissabores de nossos próprios atos e aceitar que temos limitações, que podemos sim sofrer em casa, pois isto pode ser útil no futuro.

As observações finais podem ser usadas pelo terapeuta para que ele diga que ela deve experimentar os dissabores de seus atos, aventurando-se mais, mas Susy não o dá ouvidos e continua acreditando que ficar reclusa em sua redoma é mais confortável. O circo fechou quando ela reencontrou uma prima que não via há anos, numa festa de inauguração da galeria de arte perto de sua casa. Cátia, sua prima, disse-lhe que aprendeu a conviver com a tristeza depois que o marido a deixou. Em uma visão onisciente, Cátia vive com alguns gatos e só sai de casa para trabalhar como atendente de uma loja no shopping. Assim como Susy, ela não tem muitos amigos e não costuma frequentar lugares que a façam ter contatos demais, pois isto significaria um risco de ser deixada mais uma vez.
Enfim, Susy reforçou suas crenças de que não precisa procurar ajuda nem em si, nem nos outros, visto que Cátia vive 'bem', então ela poderia viver da mesma forma. Encerrou a terapia e toda a sua vida voltou-se para a adoração de sua condição de miséria emocional.

Pode ter sido um exemplo extenso para uma simples explicação, mas acho necessário que se coloque em vias prolixas, para que o resultado seja mais recheado.
Estou gorda? o que há demais? eu gosto de comer, há tantas pessoas gordas..
Estou sozinha? o que há demais? eu gosto de ficar sozinha, há tantas pessoas sozinhas..
e assim seguimos nos espelhando nos outros, nos seus infortúnios e perdendo a coragem para mudar a nossa condição.
É bom acomodar-se? Quem deve medir em uma balança um tanto subjetiva é quem se faz esta pergunta. Comodismo é diferente de Conformismo. Há uma tênue linha entre estas duas instâncias.

Perpassando os conhecimentos existencialistas e fenomenológicos, o que chamamos de destino pode sim ser um ingrediente a mais na receita de aceitar-se em sua condição e não fazer tanta questão de mudar por conta própria. Afinal de contas, quem rege o meu futuro? O locus de controle, neste caso, é externo, interno? Há de se pensar se o homem tem mesmo a condenação suposta de que é livre, de que pode responder pelos próprios atos e ser 'alvo' das consequências destes.
Então, colegas que permaneceram aqui até este presente momento, o que vocês me dizem? Somos livres e desempedidos para mudarmos nossas vidas, independente do que aconteça? Ou temos uma força que rege por nós, permitindo que, mesmo que mudemos nossas atitudes, nossa história já está traçada?

Carrasco de Mim

Já acreditei no destino
porque era cômodo para mim.
Saber que se não consegui ser capaz
não foi culpa minha, era pra ser assim.
Hoje que o destino não me banca
sou o sujeito das minhas escolhas
e responsável pelos meus fracassos.

Mas o destino me condenou
a ser meu próprio Carrasco.

( artista desconhecido )

quinta-feira, 13 de agosto de 2009

a culpa é sua

Ele foi embora. Deu Adeus e partiu, subitamente, assim como mostrou-se de início nesta história confusa e difusa. Nós dois sabíamos disso, sabíamos das dificuldades, sabíamos de tudo, poderíamos ter dito isso e muito mais, mas o sentimento calado, velado e atropelado tomou conta dos nossos momentos e assim, continuamos passando por cima de tudo, como se aquilo fosse algo trivial. Não sei ainda se devo iniciar esta ideia com um pedido de desculpas, por isso te peço compreensão. Foi algo trivial. Foi belo, foi divertido, inovador, uma experiência de aprendizagem.. mas todas são. Eu entendo que o seu pedido tenha sido justamente que isto não acontecesse, mas eu não posso engolir esta onda de franqueza guela abaixo e sorrir, iludindo cada dia mais alguém que estimo tanto. Pode ter sido este o problema.. a estima.
Não é de hoje que eu percebo a minha inquietante admiração por pessoas que não estão no hall das mais queridas. Para alguém que nada na piscina rasa: "Ela gosta é dos cafajestes". Mas eu não nado na piscina rasa. Eu nem nado. Eu me afundo no alto mar escuro e gelado, nas profundezas de qualquer coisa que pareça natural e ...trivial para alguns. Eu fui, sim, bem a fundo no que vivemos. Talvez tenha sido este o outro problema. O ideal era que eu me desligasse dessas análises apontadas para tudo e para todos. Freud, levanta deste túmulo e me salva da Psicanálise! Está incontrolável.. será um prenúncio de uma formação?

Bueno, deixando o acadêmico de lado - já (não)suportando o reinício das aulas tão brevemente -, voltemos, caros colegas, aos problemas da questão. É possível se desligar? A intenção era ao menos dar um Pause nas ligações neuronais incomodativas, mesmo que eu saiba que aonde quer que eu vá, eu vou achar defeito em algo. Ô imperfeição, para que fostes apresentada a mim? Eu gostava de ser Narcisa...

Pois bem, eu até dei a pausa necessária.. mas afundei fundo (permita-me a redundância, estou sensível) em outros mares que, vejo agora, não deveria ter-me afundado. 'tudo é válido na vida.. as experiências servem de aprendizado.. prefira arrepender-se por não ter feito..' é tudo muito fofo no discurso alheio. De fato, aprende-se vivendo, mas será que não podemos ser poupados ( ou, neste caso, pouparmos alguém ) do sofrimento? Eu não sou má, só me descobri... digamos assim.. desapegada.

A questão é que você não me deu chances de dar Adeus. A sua despedida não foi escancarada, como a sua chegada. Foi um seco 'boa noite' que selou a carta enviada para a Finlândia, sem previsão de retorno.


Interrompo a narrativa para finalizar com um pensamento que me impede de fazer qualquer outra coisa.
O dito cujo está bem acomodado, sentado no pudim, seguindo os referenciais psicanalíticos que o cercam. Ousadia, é uma palavrinha que estampou-se em sua testa quando reparei na presença de alguém notório e ao mesmo tempo discreto. No entanto, parece-me que tens medo de ousar, mesmo que não queiras, eu compreendo, seguir a estória. Rasgue as cortinas que te separam da vida real.. e pare de se esconder nos Seminários.

Retornando, não gosto de deixar inacabado. Eu não me despedi, mas com razão. Não me despedi de algo que eu não entrei. Não aprofundamos, nadamos no raso. E foi aprendizado, sabemos o que se passa nesses Km de distância.., então, deixemos assim.

segunda-feira, 10 de agosto de 2009

falar é dispersar

Tenho tanto ódio hoje do conformismo que foi tachado como apaziguador das mais diversas colisões de ideias. Muita gente fica quieta diante do que é fato, só pra evitar mais discussão e algazarra. Qual o problema de se discutir sobre algo que não agrada à todos? E mais, precisa-se de algo que agrade à todos? É partir da discordância que as opiniões mais valiosas emergem e trançam-se, enfileiradas ou debruçadas sobre os propósitos alheios, eu e você, caro colega, estamos aqui, no mundo, na vida, para discordar. Estamos aqui para fazermos algo, para executarmos a evolução. Quem a criou pode mudar o rumo da história, mas quem está atuando como fantoche e se acha no maior direito de sentar e esperar é você: humano preguiçoso e deprimente (significado correto da palavra deprimente: aquele que transmite sensações desagradáveis e agoniantes; provoca náuseas; deprime).


Temos boca para uma série de prazeres que a psicanálise já antecipa, mas dentre os que não relacionamos à alimentação - no amplo sentido da coisa -, encontra-se a arte do discurso. Cícero, dê o exemplo e nos mostre porque você é lembrado!

Agora que estou deveras satisfeita com o resultado subjetivo de minha apelação, torno a ser controversa e a pensar que às vezes é melhor calar-se a falar abobrinha. Ou boas verdades.
Devemos sim olhar-mo-nos no espelho para descobrirmos aos poucos do que somos feitos.. mas quando o nosso sino não toca e o cemancol não entra em ação, é quase que notório que algo sai de nós e é transmitido aos próximos:

"Por favor, me fale boas franquezas face a face, eu estou me iludindo".

Irrita saber que existem pessoas que são assim. Sim, caro colega, pessoas assim como eu e você, que tem pontos fracos e também não sabem o quanto escondem dentro de si próprios. Já dizia Nietzsche que é difícil conviver com os outros, visto que calar, isto sim, é muito mais difícil.

Chico, obrigada por traduzir em música meus extensos pensamentos..

"Quero lançar/Um grito desumano/Que é uma maneira/De ser escutado/Esse silêncio todo/Me atordoa/Atordoado/Eu permaneço atento/Na arquibancada/Prá a qualquer momento/Ver emergir/O monstro da lagoa..."

sexta-feira, 7 de agosto de 2009

Histórias que se mesclam são apenas relações de um mesmo contexto

E assim ele a deixou, em um dia negro com lágrimas pesadas caindo do céu, quando o vento nem soprava a seu favor, tampouco contra. Há dias que ela nota a decência de sua postura frente à uma simpatia que apareceu, podemos dizer, de repente. Pode ser que esta tenha sido intimidada devido a presença de uma sombra possessiva, que sem muitas palavras, tratava de afastar quem fosse que se aproximasse. Ou não. A desenvoltura de suas conversas pode ter se expandido por várias outras razões..que tolice atribuir à isto toda a mudança.


Há de se perguntar porque Sarah insiste em procurar parceiros comprometidos..é evidente que em algum momento eles irão deixá-la. Caso aconteça o oposto, e o marido separar-se da esposa e assumir seu relacionamento com ela, eventualmente Sarah seria feliz por alguns anos. Tempo depois, ela sentiria-se traída, deixada, esquecida. É assim que ela 'funciona': sua máquina emocional, se me permite esta antítese, é programada, desde o nascimento, para ser o centro da vida de alguém. Quando veio ao mundo, sua mãe a olhava como a flor mais bela do jardim, aquela que brilhava e ofuscava a beleza e graciosidade de todas as outras. Era a criança mais saudável do berçário, a mais comportada entre as irmãs, a que melhores notas tirava e enfim, a primogênita. Quando Sarah viu-se em segundo plano, tendo que dividir a atenção e os presentes que antes recebia inteiramente, surtou. Entrou em revolta e melancolia profundas, recusando-se a brincar, comer e conversar. Quem a tirou do escuro foi Bob, um bombeiro que por sorte teve a sensibilidade de procurar dentro do armário por crianças que poderiam ficar para trás na casa que pegava fogo seis meses depois do nascimento de Jena, irmã de Sarah. A casa ficou aos pedaços, como estava antes o coração de Sarah. Quando foi resgatada, sentiu o frescor de respirar ar puro e rever seus pais. Voltou a ser a menina doce e inquieta que era meses antes. Quem escuta este episódio por ora acredita que Sarah não teve problemas com seu posicionamento em suas relações, fossem elas de trabalho ou afetivas. Enganam-se, colegas. Ela encobriu seu lado possessivo e narcísico, deixando que se estabelecesse em sua personalidade aparente os traços de uma jovem absolutamente equilibrada.


Apenas após namoros longos, Sarah tomou-se conta de que aquelas sensações que a atormentavam quando tinha 7 anos de idade voltavam como ondas que após arrebentadas, parecem misturar-se às demais águas, mas que voltam acrescidas de mais volume para uma onda mais forte e arrebatadora. Quando terminou com Charles, seu primeiro namorado de longa data, Sarah viu-se sozinha na sala, sentada no sofá frente a lembranças que não queria mais ter.


Demorou a se apaixonar novamente, mas quando isto aconteceu, foi comedida e se entregou aos poucos, conseguindo a atenção do parceiro até a primeira discussão. Ela era misteriosa, envolvente, completamente duas caras. Meio a sopas instantâneas e barras de cereais, Ruth pergunta-a quem era o rapaz que interfonara de manhã perguntando por ela.



Devia ser o fruteiro, da banca da esquina.

Você encomendou alguma coisa?

Não, acho que não.

E por que ele interfonou, então?

Eu vou lá saber, Ruth? Por que você não o perguntou, hã? Seria mais fácil, ao invés de ficar me questionando.

Não estou... ah, hahahaha. Você acha que eu estou com ciúmes? Do fruteiro?




Desta vez, Ruth vestiu sua capa narcísica e berrou no corredor, quase vazio, como se precisasse fazer ecoar sua voz. Sarah deixou transparecer seu espanto frente à reação de Ruth, o que o fez 'baixar a guarda' e tentar consertar o que fez.


Desculpe, amor, mas eu não estou com ciúmes.. apenas quero saber o que ele queria, já que você não fez encomendas.

Sarah sentiu uma punhalada por saber que não presenciaria uma única fala de Ruth demonstrando ciúmes que ele mesmo poderia admitir. Ele era discreto, eventualmente pedia que Sarah colocasse roupas menos decotadas e gostava de abraçá-la quando homens passavam por eles, mas nunca dizia que sentia ciúmes; e, quando questionado sobre isto, ele desconversava. Seria uma dificuldade em assumir, tranquilamente, como qualquer pessoa sã e mortal que sentia ciúmes de sua parceira?
Segundo ele, ciúmes nós sentimos quando há reciprocidade no adultério, seja ele nem mesmo cometido no plano carnal, ou seja, mesmo quando um homem olhava para Sarah descaradamente, Ruth não sentia ciúmes, pois sabia que Sarah não retribuiria. Isto a deixava possessa.

Huhum..

Amor, não faz assim. Eu só perguntei se..

É Ruth, você só perguntou, como sempre. Só pergunta.

Você queria que eu pulasse no cara sem saber do que se tratava?

Ai, pára de ser criança.. você por acaso já sentiu ciúmes de mim?

Amor..esse papo de novo? Eu confio em você.

Sarah chora, e, como se tivessem tido uma longa discussão sobre, ela solta:

Acabou aqui, chega! Você vive a sua vida, e eu a minha.. se é pra eu ser apenas uma parte da sua vida, que você sequer se importa em não perder e demonstrar isso, então deu pra mim.

Amor..?

Sarah solta a cesta delicadamente no chão e sai, sem deixar rolar uma lágrima, dirigindo-se ao ponto de táxi.


Pra que ficar mordida de curiosidade em saber se ele foi ou não? Criatura, não seja tão instável.. qualquer um que te disser palavras ambíguas ou que mesmo queira ser seu amigo agora vai ser promovido à 'um cara que eu conheço, muito querido.. quem sabe rola' ?

Aprenda a dividir, little honey. Aprenda a dividir.

Completando a minha complexa contradição característica, trecho do livro mais bem escrito por MM.:

"(...)agora entendo que nunca estarei pronta, e que tudo o que preciso é conviver bem com meu desalinho e inconstância, que enfim aceito. Bom trabalho, doutor.".