sábado, 5 de setembro de 2009

apego

Precisava vê-lo devorando a carne, para que seus mínimos detalhes, aqueles mais comuns à todos, fossem à mim revelados. A paixão pela proximidade entre o tenebroso e a exposição a agradavam, assim como seu interesse pelas suas aventuras menos heróicas aumentava sua excitação. Saber se ele fora viajar, o que descobriu, quem conheceu; ouví-lo falar de suas teorias mais abrangentes e revolucionárias e dos maiores acontecimentos de sua vida não a apeteciam. Ela satisfazía-se apenas em saber o que ele costuma tomar no café da manhã e finalmente, enxergar seus pés. Thereza tinha regras neuróticas que não a deixavam manter qualquer relacionamento se não as cumprisse. Ver os pés de alguém era uma revelação da alma que nunca a traía. Ver o pés de Andrew é seu objetivo até que seu interesse por ele suma, assim como fez com os outros casos primaveris.

Via-o comendo e confessa que seu mastigar não é nada sutil, o que dá um ar primitivo à necessidade básica humana: comer. Ela gosta de ser romântica e sonha, mas é oposta ao romantismo de um encontro ( sim, não chama mais este envolvimento de relação, pois daria uma conotação promissora demais à alguns desejos que surgem e logo vão embora) que prometeria à ela sorrisos melosos e abraços sufocantes. Thereza queria o acalento apenas da curva que os braços dele faziam ao envolver seu corpo pela manhã. Quanto ao ato, seja ele do diálogo, sexo ou demais, ela preferia a submissão de seu corpo e alma para que não tivesse tempo, oportunidade e espaço para pensar. Thereza sabia que se pensasse além, desistiria e correria dos braços de Andrew.

Os pés seriam um retrato da personalidade e dos cuidados que cada um tem consigo. Pablo Neruda traz alguns versos que metaforizam esta fixação que Thereza tem pelos pés alheios:

"Quando não posso contemplar teu rosto,
contemplo os teus pés.
Teus pés de osso arqueado,
teus pequenos pés duros.
Eu sei que te sustentam
e que teu doce peso
sobre eles se ergue.

Mas se amo os teus pés
é só porque andaram
sobre a terra e sobre
o vento e sobre a água,
até me encontrarem."

Ver os outros em seus pormenores diários e humanos me faz pensar que não devemos nos apegar ao kitsch carnal. Palavra alemã, kitsch apareceu em meados do sentimental século XIX e que em seguida se espalhou por todas as línguas: o kitsch, em essência, é a negação absoluta da merda; tanto no sentido literal como no sentido figurado: o kitsch exclui de seu campo visual tudo o que a existência humana tem de essencialmente inaceitável.

Vê-lo bem vestido, "nos padrões" e sem mistérios exalados de sua forma, com um olho emprestado, é não vê-lo. Esta imagem é apenas um esboço de Andrew. O verdadeiro, a sua essência, o seu corpo e a sua alma, estas estão pairando sob a cabeça de Thereza, demonstrando um eterno paradoxo que a incomoda. As partículas da subjetividade de Andrew estavam alcançáveis metaforicamente, mas é tão perto, tão possível, que Thereza não sabe como aproximar-se.

Dada a insustentável condescendência que me acomete hoje, introduzo Andrew no repertório de meus delírios adaptados.

Nenhum comentário: